Lia observava as nucas de seus dois amigos, sentada no banco de trás, e, entre eles, a paisagem que se transformava conforme os quilômetros avançavam.
Ela sentiu quando o veículo começou a chacoalhar levemente para os lados, e, assim que olhou para fora, através de sua janela de passageira, não havia mais estrada.
— Pessoal — Voltou o rosto para o para-brisa e aproximou o corpo do vão entre os bancos dois amigos na frente — Pessoal, o que está havendo?!
O horizonte vasto e verde, quase sem árvores, fora engolido por uma brancura de nuvens leitosas. Era difícil de acreditar, mas o veículo estava suspenso no ar, deslizando perigosamente para lugar nenhum.
Lia sacudia os meninos pelos ombros, mas eles não olhavam para ela. Suas mãos estavam ficando doloridas de apertá-los até os ossos.
*
Damien conduzia o grupo ao redor do tabuleiro Ouija. Mesmo que fosse um inexperiente ocultista, seu visual trevoso e os cabelos longos e negros eram suficientes para impressionar seu grupo de amigos, transmitindo-os alguma segurança mágica.
Pessoas estão sempre em busca de aventura, ou pelo menos naqueles tempos estavam. Assim, Viana, Leon, Viny e Cecília encaravam o amigo, ansiosos.
Conforme as palavras iam surgindo, o nível de energia entre eles crescia, atraindo todo o tipo de entidade, como uma presa sangrando nas águas do mar aberto.
Manifestações energéticas debruçavam-se sobre os ombros dos jovens, arrastando-os para frequências cada vez mais pesadas.
— 616...?
Silêncio entre eles.
— Para de zoar, gente! — Cecília explodiu — O quê que é isso de 616 agora!?
Damien rapidamente entendeu o significado da nova revelação.
— Tudo é inferno! — Os outros o olharam, agitados — “Tudo é inferno”, é o que significa este número.
— Puta que pariu, chega! — Viana levantou como um raio e correu para dentro de sua casa, seguido pelos outros.
Damien colocou o tabuleiro debaixo dos braços e olhou para trás, onde a mata atlântica de Petrópolis permanecia intocada pelo homem. Sentindo sobre si um olhar desconfortável, seguiu os amigos para dentro.
*
Lia não estava mais no interior do carro. O pavor diminuíra, e, agora, seu corpo flutuava em meio a brumas que se torciam como fantasmas.
Seu corpo e seu coração eram atraídos em direção a um lugar específico. Em sua mente, ela transformara-se em um peixe que nadava. Nadava a favor de uma forte correnteza. Era absurdo, mas sentia em sua espinha a voz conhecida de alguém.
— Estou aqui — A voz longínqua e masculina repetia.
— O que é isso? Onde estou? — Lia atravessava existências e dimensões, flutuando entre éons.
— Estou aqui.
A voz repetiu as mesmas palavras por vezes.
*
Como o jovem metido que era, Damien procurou, ao longo dos meses, uma forma de encerrar a conexão que criara entre os amigos e entidades obscuras durante aquela tarde do Ouija, porém sem sucesso.
Como era de se esperar, a mente de cada um deles cedia aos poderes de sugestões das criaturas que atraíram para este plano.
Durante as madrugadas, passou a ser visitado em sonhos por uma mulher, que o aterrorizava com pedidos de ajuda. Quando sentiu que estava se apaixonando por aquilo – a aparição passara a levá-lo para cama –, ele decidiu tomar providências e entrar em contato com um experiente ocultista.
Após o encontro, em posse de um ritual ousado, ele trancou-se no seu quarto, no porão da casa, e deu início ao trabalho dentro de um círculo, rodeado por sete velas negras. “Nada acontecerá a você, se estiver devidamente protegido por um círculo de banimento” – As palavras do homem vinham à sua memória, como fragmentos soltos revelando-se aqui e ali na areia.
O estado de transe que as palavras do encantamento proporcionavam e a grande quantidade de álcool que bebera entraram em combustão. Minutos depois, o jovem tombou, desacordado entre as velas.
*
Como continuar uma história que acontece fora do tempo?
Lia e Damien encontram-se no vazio, e a única forma de continuar esta narrativa é dar um lugar e uma forma para o que aconteceu.
Suas energias encontraram-se em uma espécie de limbo. Um lugar esquecido entre dimensões, desolador e abandonado. Uma carcaça de tempo, onde tudo foi esquecido ou perdido.
— Então... é você.
Seus olhos se encontraram, e o olhar de repúdio de Lia logo transformou-se em um olhar úmido e misterioso.
— 616 é seu nome — Ele disse, na mente dela, sem mover um músculo da face — Esqueça o dia em que você foi Lia.
— Pois este deveria ser o SEU nome — Ela rebateu, com raiva, se aproximando demais dele – Porque quem ardeu nas chamas de velas negras foi você, e toda a sua casa!
Nesse instante, o rosto de Damien contorceu-se, numa expressão de choque e dor, e, olhando ao redor, ele compreendeu o tudo e o nada.
— Você morreu num acidente de carro, Lia, eu vi. E, durante anos — Ele se calou, lembrando que, para ela, a quantidade “anos” provavelmente não fazia mais sentido — Você está morta, e, através do meu jogo de Ouija... — Calou-se.
Ficaram quietos. Ela sentiu um medo maior que o universo e desabou nos braços dele.
Ao longe, entidades amorfas repugnantes preparavam-se para estraçalhar os dois.
No abraço que durou uma vida, ele jurou protegê-la, e, com o coração que lhe restara, pediu todo o poder aos seus santos que habitavam as trevas.
Correção e Revisão por @the.ladymelancholia
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