terça-feira, 1 de agosto de 2023

Drevah


 Im so tired of being here”


Quanto mais chaveiros de metal minha mochila tivesse pendurados em um único zíper, melhor. Gostava de imaginar que aquele insistente tilintar metálico afastava o mal, protegia minhas costas. “Fantasmas não gostam de barulho”, dizia para mim mesma sem saber que na verdade queria dizer pessoas. Pessoas de carne, osso e maldade.

Tlin tlin tlin uma cabra pula nas montanhas sob o céu nublado e não se intimida pelo frio. Tlin tlin tlin graciosa, confiante no terreno escarpado.

Sou uma cabra solitária com o vento frio atingindo a face como um soco. Tlin tlin tlin....enterro o capuz do moletom ainda mais em minha cabeça sentindo que se ele tivesse tamanho suficiente, entraria dentro dele para sempre. Estou protegida do mal no alto de minha montanha imaginária. Sou uma cabra de capuz, tentando sobreviver no árido terreno do colegial. O capuz cobre minha testa e parcialmente meus olhos atrasando o acesso e a leitura das páginas do meu coracão pelos cruéis adversários.


“Supressed by all my childish fears”


Cada um dos chaveiros era de um personagem de desenho japonês. A coleção dos dons de cada um deles me inspiraria a ser forte. A força de um samurai assassino que jurara nunca mais matar alguém. A felicidade de uma garota orfã. Os poderes de manipular o tempo.

E aqui o tempo não passa, as aulas se arrastam enquanto rabisco animais sobre a mesa. Conforme os minutos passam não aguento, e eles ganham asas, céus negros e dentes de bestas. 

O tempo me transforma em uma também.


“And if you have to leave..”


Não consigo participar da montagem da peça. Estou de corpo presente, sem capuz e olhos atentos. Não existo para as pessoas daquele colégio novo. Tento falar, sou ignorada.

Tem semanas em que falto nas aulas da montagem dessa peça porque simplismente nao aguento a dor de manter um sorriso no meio daquela gente indiferente.

Uma releitura de Othelo? 

A caveira de Sheakespeare deveria estar vomitando, como se isso fosse possível, por puro nojo daqueles babacas.

Mas até a caveira de Sheakspeare perdia os poderes naqueles dias diante daquela gente.


“I wish that you would just leave

Cause your presence still lingers here”


E o abraço da melancolia foi o mais confortável. O azul, o pink.... viraram prazerosamente camisas negras tamanho g. As músicas foram ficando cada vez mais pesadas e barulhentas, como se aquilo pudesse abafar meus gritos de medo e desespero.

Prestava atenção infinita nas aulas de exatas porque sabia que aquilo nunca estaria em minha compreensão na vida. 

As aulas de literatura.....as passava sorvendo tudo que pudesse. Byron tornou-se um amuleto, Alvares de Azevedo virou meu par romantico. Todos mortos, todos ossos.


“And it won't leave me alone

These wounds won't seem to heal, this pain is just too real

There's just too much that time cannot erase!”


Lianna e Café foram assassinados em Brotas. Lianna tinha lindos olhos claros circulados por lápis preto delineador. Esse par virou meu casal fantasma amigo e logo a falecida me ensinou com suas mãos de cadáver sua maquiagem preferida.

- Quanto mais carregado melhor. Você pode passar o dedo assim. - esfregava os dedos translúcidos abaixo de minha linha d’agua - Melhor, viu? Nirvana style garota!

A moldura negra obrigava meus algozes a olharem dentro de meus olhos. Na natureza todo bicho que tem contorno mata outros bichos, transmite poder. Desenhos xamânicos do poder.

Meu animal totem era um black dog; ainda é.


“When you cried, I'd wipe away all of your tears

When you'd scream, I'd fight away all of your fears

And I held your hand through all of these years”


- Você sabe o que é gótico? Uma gente que anda de maquiagem e roupas pretas, ouvem metal e passeiam em cemitérios!

Marianinha me disse, seus all star velhos passeando em cima do banco de madeira durante a hora do intervalo.

- Ah é? - disse de baixo, olhando a interlocutora que havia crescido de propósito em pé em cima do banco. Ela sabia chamar a atençao.

- Poe na internet. - ela pulou e deu as costas caminhando na direção dos banheiros, ignorando o inspetor que em seu encalço repetia a ordem de descer dos assentos.

A Marianinha era mitomaníaca e merece um capítulo só pra ela. Ela era uma cabra negra, pequena e excentrica. Andava sozinha com seu rebanho de amigas negras imaginárias.

“Não ande com a Marianinha, ela nao é boa companhia” os professores diziam, mas eu a admirava e não acreditava que companhias pudessem interferir em essências. As pessoas eram loucas, completamente incoerentes. E nós éramos cabras.


“But you still have all of me......”


A peça ficou pronta e fui acusada de não ter participado. Nao tinha papel, nem funçao, por isso foi obrigada a ficar recebendo os pais na porta no grande dia. Teria que usar preto, ser cordial e dar boa tarde. Nada de capuz.

O pouco que lembro era da filha do dono da 1900 entrando de vestido negro cantando My Immortal, do Evanescence.

Foi demais para mim. Fechei a porta do pequeno teatro improvisado e ganhei os corredores da escola.

Dias depois a professora disse que me bombaria. Não conseguia acreditar. Ela que sabia quem eu era do colégio anterior. Professora de literatura, conhecia bem minhas notas. Ela que apanhava do marido e chegava de óculos escuros na sala. Ela, que nao conseguia me enxergar, interpretar. Justo ela, que ensinou sobre os oráculos gregos. Ela não valeria um sacrifício nem para colheita de urtigas.


“You still have all of me, me, me”


Minhas notas estiveram entre as melhores durante todo o período acadêmico e minha conduta como aluna sempre foi impecável, mas ainda hoje acordo assustada de sonhos em que estou no colegial, velha, no meio de todos os colegas jovens, e os professores dizendo que vou reprovar, que não poderei sair de lá. O pânico de ficar presa para sempre naqueles corredores me revira o estômago.

Acredito que de certa maneira o cadáver da menina ficou preso lá. Jogado em meio às carteiras, esquecido depois das aulas do dia. Do ano. Da década. Do vintênio!

O cadáver da garota aguarda o amado Alvares de Azevedo ir salvá-la, mas ele sempre fica preso em alguma confusão numa Taberna qualquer.

Ela aguarda aquele principe em trevas que não apareceu para salvá-la. Um Mr. Robot pálido num capuz velho, cheio duma força misteriosa. Duns olhos magnéticos e barba negra selvagem.

Ela espera que ele venha com um saco, pois precisará juntar alguns ossos...


- Em estudo, sobre o colegial 🦇 -


Dedico para todas as garotas que tiveram que dar um jeito de sobreviver ao colegial

E tb aos meninos que sobreviveram mas meio malucos.

Que os jovens das novas geracoes sejam mais sabios e mais brandos!


Obs: Ele disse que ler isso “trouxe um nervoso... ugh... um horror à adolescência... pqp... pavoroso lembrar dos frágeis dispositivos mentais que a gente usa nessa fase pra se proteger... os chaveiros naquele caso... o importante é que funcionavam... nós fomos pra longe da realidade..”


Digo que: sem mais!



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