Foi mais rápido do que uma raposa matando um coelho. As fofocas sobre a morte de Tilda estavam na boca de todos, sendo mastigadas com curiosidade e sadismo.
O ar andava esquisito no mundo, e pessoas iam para baixo da terra por contraírem um novo vírus. Todos andavam com medo, escondendo o rosto atrás de máscaras toscas de pano como se pudessem evitar seu fim.
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Vinha tensa da rua quando abriu o portão de entrada e caminhou pelo corredor estreito até uma porta à sua esquerda, bem lá nos fundos. Com seus passinhos curtos pensou que "até estava no lucro" pois conseguira alugar pela primeira vez um quarto com um minúsculo banheiro só para ela. Ali dificilmente seria encontrada nos dias de folga, perdida entre cobertores diversos, livros e xícaras de café.
Sentia-se ansiosa naquele final de tarde e atribuía isso à temperatura que baixara bastante e à garoa que pegara na volta do trabalho. Parece que o outono havia posto o verão para correr.
Tirou os sapatos, o casaco e aninhou-se na poltrona de segunda mão agarrada ao celular. Queria dar uma checada nas redes sociais antes do banho.
Sentiu sua visao embaralhar e escurecer, e seu corpo foi tomado por uma letargia misteriosa que lentamente lhe deu um abraço. Tilda sentia que sua mente estava sendo sugestionada por algo ou alguem que não era ela. Sentiu-se invadida por algo que a tocava pelo lado de dentro de sua pele.
Inexplicavelmente, este algo obrigou-a a levantar-se dali, vestir novamente o casaco de frio que largara sobre a cama, calçar as sapatilhas molhadas e lançar-se para fora do quarto, batendo a porta atrás de si, ganhando o corredor e em seguida a rua.
Aterrada de pavor, Tilda assistiu suas pernas atravessarem a noite enquanto a garoa voltava a umedecer suas roupas e cabelos. Vez ou outra pisava em ladrilhos soltos e a agua subia molhando seus pés. Seus olhos eram de louca, mas ninguém os viu. O povo estava dentro das casas naquela noite não propícia a nada de bom.
Alguns moradores de rua a viram mas não ousaram abordá-la, pois ela parecia transtornada.
Seu corpo estacou muitos quarteirões depois em frente a um portão de grades de ferro fechado com vidros turvos, espremido entre o que pareciam ser duas lojas de comércio, uma de cada lado. Tilda tateou o vidro com as mãos e encontrou uma pequena abertura com dobradiças que empurrou para trás e em seguida enfiou o braço até o cotovelo em busca de algo....uma campainha, que seus dedos foram compelidos a tocar freneticamente.
- Quem é, porra?! A esta hora? - voz masculina, irritada.
Tilda sentiu sua língua movimentar-se lascivamente e seu maxilar abrir-se contra vontade.
- Sou eu - a voz soou medonha para ela e para o homem de contorno difuso que se aproximava do portão.
- Puta merda Ed! É ele, é ele! Caralho.
Ouviram-se os passos de um segundo homem que veio descendo a escadaria em direção ao outro. Os dois pararam atônitos, distantes do portão, com medo da sombra úmida e insignificante da mulher do lado de fora.
- Sou eeeeeeuuuu - a voz saiu alterada deixando os dois de cabelos em pé - Satanásssssssssss, me deixem entrar!!!! Vou entrar!
Tilda sentia seu sangue ferver dentro do corpo, e não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Sua mente estava lúcida porém perversamente dominada. O corpo e as falas não eram mais suas, ela havia cedido ao sobrenatural.
Sentiu vontade de rasgar a garganta daqueles dois covardes. Largou no chão sua bolsa, o casaco e correu em direção ao fim do quarteirão onde escalou um pequeno muro apoiando-se em lixo e caixas abandonadas por ali. Colocando-se em pé urrou como um monstro.
- Quero entrar. Ed, Cavalo, me deixem entraaaar!
Os dois haviam destrancado o portão para acompanhar o trajeto da mulher, e agora discutiam debaixo da chuva.
- Deixa ela entrar com ele. Ela vai morrer.
- Puta que pariu, você tá louco? Nem fodendo!
- Ela vai morrer caralho, e a culpa vai ser sua!
- Essa puta não entra desse jeito. Isso vai passar para todos nós.
- Não se ela não falar com ninguém - Ed estreitava os olhos buscando a silhueta da mulher em cima do muro - Isso não tem nada a ver com ela, deixa ela subir e ver Alice!
A mulher desaparecera dali.
- Essa puta não entr...- Ed acertou um soco no nariz de Cavalo, que caiu imóvel, lambendo o chão.
Ed correu para o fim da rua e encontrou Tilda agachada atrás de um carro com as mãos pingando sangue. Quando se aproximou, viu que ela havia perdido as unhas arranhando-as no asfalto que ficara cheio de pedaços de unha e carne.
Enquanto tentava puxar a mulher desconhecida pelos braços, Ed garantia que ela iria ver Alice. Que deixaria ela entrar. Fingindo uma aparente calma, conseguiu que ela a seguisse até as escadas em direção ao primeiro pavimento do sobrado.
- Vou te levar até Alice, mas vai bem presa! - e apertou a mão sobre o punho fino de Tilda que não podia sequer imaginar quem era Alice.
Subiram ainda um segundo lance de escadas de cimento e entraram em um corredor de piso antigo de tacos de madeira. O ar fedia a cigarros.
- Alice, ele está aqui, e veio cobrar o preço - Ed gritou no corredor escuro.
Alice, um homem esquálido e andrógino apareceu num pequeno vão da segunda porta do corredor e antes que pudesse responder viu Tilda lançar-se sobre Ed num beijo insano. Dominado por fossem quais fossem as forças, o homem cedeu ao beijo encarando os olhos de lagarto do demônio que corrompera a moça.
- Ah, é você, demônio maldito. Veio me cobrar, não é mesmo? Arrependeu-se da tarefa?? - bradou o homem magro abrindo a porta por completo e puxando a mulher com violência.
- Morra desgraçado - Tilda tinha a voz encorpada por um coro macabro - vou te levar comigo! E pulando sobre Alice atirou-o ao chão do cômodo, largando Ed desorientado no corredor.
- Mete o pé Ed, vaza daqui!
- Não, socorro Ed! Me tira daqui, não me deixa com esse doido! - Tilda gritava a plenos pulmões quando a porta trancou-se deixando Ed no corredor escuro.
Alice amarrou com agilidade as mãos da mulher que esperneava. Ao redor do pescoço branco o bruxo passou uma corrente grossa e fechou-a com um cadeado, fazendo o mesmo com a outra ponta que enrolou em duas voltas ao redor de uma estante de metal abarrotada de livros velhos.
A corrente tilintava com o ódio da mulher quando ele começou o ritual com ervas, lâminas e velas.
Quando subjulgou o demônio e apagou as velas, Alice foi tomar um banho para lavar-se do sangue e do cheiro daquela criatura nojenta que se misturara com a mulher para cobrar-lhe o combinado.
Atento ao silêncio, Ed supôs o fim da confusão e invadiu o quarto à procura da mulher, encontrando-a toda coberta com um lençol, estirada no chão. Ajoelhou-se ao lado dela e descobriu o rosto expondo os cabelos ruivos e lisos e pálpebras fundas esverdeadas. "Mas que merda, ela morreu" e puxou-a para seu colo, junto de seu peito.
Ed largou-se junto ao que imaginou ser o cadáver da moça e dormiu. Durante o sono uma criatura obscura lhe apareceu e garantiu que ele nunca mais teria paz.
Quando sábado começava a clarear, Tilda, que terminara o ritual ainda com vida, não pode abrir seus olhos. Ed acordou ao lado da ruiva completamente desfigurada, as mãos escorregando num mar rubro e pegajoso de sangue.
Alice se aproximou com uma xícara de café fumegante nas mãos, abaixou o olhar para Ed, ainda no chão.
- Você matou a moça com 13 facadas durante a noite. Avisei pra você não vir atrás disso. Em estado alterado você acabou com a vida dela. Seu retardado!
- Ele acordou? - ouviu-se a voz de Cavalo, no andar de baixo.
Ed sentiu as lágrimas arderem seu rosto com ódio. A coisa com satanás tinha virado vingança pessoal. Naquela noite ia caçar o diabo.
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